Relato das memórias de meu pai. De juiz de direito a seresteiro, Violante deixa saudades!
Por Lea Cristiane Violante Pacheco
Aos 17 anos ele chamava a atenção pelo porte físico. Atleta, alto, magro, moreno, traços bonitos, sorriso encantador, personalidade marcante e dono de uma voz de barítono que atraía qualquer seresteiro de plantão. Assim era Carlos Alberto dos Santos Monteiro Violante, o primeiro juiz de Direito de Valinhos. Moço de origem pobre e honrada, ele sempre trabalhou desde os 11 anos de idade. Seu primeiro emprego foi como varredor da venda de um português em Marília, onde morou durante muito tempo.
Nasceu em Matão, interior de São Paulo, filho de imigrantes portugueses. Como era dotado de boa inteligência, seu pai, homem determinado, decidiu que o filho seria doutor! E assim o mandou para a Capital Paulista, a fim de que estudasse Direito. Como o vestibular do tradicional Largo do São Francisco já havia terminado, ele ficou aborrecido, mas logo soube de uma nova Universidade que acabara de surgir em São Paulo: o Mackenzie. Prestou o vestibular e foi aprovado para a primeira turma que ali se formaria.
Destacou-se desde o primeiro ano e, ao final do curso, recebeu o prêmio “Rui Barbosa”, de melhor aluno da Faculdade, sobressaindo-se na disciplina Direito Constitucional. Para custear o curso e sua permanência na Capital, todavia, ele precisou arranjar dois empregos: um, à tarde, no escritório do eminente Filomeno Costa, advogado brilhante e respeitado na cidade. Ali adquiriu excelente bagagem para o início de sua vida profissional, pois o jurista gostava do estagiário dedicado. O outro era das 19 às 23 horas, como revisor da “Revista dos Tribunais”.
Ele sempre teve um português escorreito: escrevia e falava muito bem! Aos sábados e domingos, não raro, dava aulas particulares aos colegas que tinham dificuldades e brincava que às vezes “afundava os sapatos naqueles tapetes felpudos e chiques das mansões que frequentava”.
Quando terminou o curso, tornou-se advogado e se casou com Eny Lea Mousinho, também advogada, sua eterna companheira pela vida afora e com quem veio a formar a grande família de nove filhos e 12 netos, um sonho que sempre acalentou e um orgulho para a vida toda!
O jovem idealista
Ingressou na magistratura ainda jovem e cheio de ideais. O doutor Violante, como o chamavam, era um homem realizador. Por todas as Comarcas onde passou, deixou sua marca: construiu casas para abrigar menores, entre elas o Centro de Integração do Menor (CIM) e a Casa do Garoto, ambos em Tupã; concluiu as obras da Casa da Criança em Pacaembu que se encontravam estagnadas; construiu a Casa da Criança em Paulo de Faria, implantando ainda inúmeros outros serviços de cunho social para as comunidades por onde esteve. A tônica era sempre o amor e a preocupação com os menos favorecidos e com a prestação de melhores serviços à sociedade.
Para viabilizar suas obras, ele mobilizava as pessoas abastadas da cidade e a elas prestava contas mensalmente dos investimentos realizados, que ele fazia questão de conduzir pessoalmente.
Por sua militância à causa do menor, ele recebeu uma homenagem da Câmara dos Vereadores de Valinhos, logo após a sua morte: emprestou seu nome a uma escola, localizada no Bairro Dois Córregos a Escola Municipal de 1° Grau “Carlos Alberto Violante”, hoje transformada em abrigo seguro para os moradores de rua.
Aqui, respondeu pela estruturação do Poder Judiciário. Ressalte-se que Valinhos foi o primeiro município do interior do Estado de São Paulo a instalar uma Vara Distrital. E Violante foi designado pelo Tribunal de Justiça para encarar o desafio, em meio a uma acirrada disputa de juízes que almejavam a oportunidade.
Mais tarde, na Capital Paulista, ele implantou um serviço de vanguarda no campo das Execuções Acidentárias, com avanços que ele mesmo criou para agilizar o atendimento do poder judiciário ao público nesta área. Ainda na Capital atuou como juiz corregedor dos presídios e da Polícia Judiciária e, depois de aposentado, trabalhou como assessor na Secretaria de Justiça. Foi também membro do Grupo de Trabalho que elaborou o anteprojeto do Código de Execução Penal, entre inúmeras outras obras por ele deixadas.
Palmeirense e dono de uma voz afinadíssima e de grande potência, como já realçado, ele era muito requisitado para as serestas e reuniões de amigos. Chegou a participar de inúmeras festas e churrascos em Valinhos, entre eles, um num Açougue da cidade, com os filhos violeiros a tiracolo. Fazia questão de dizer que ”ali ele era o Violante.
O doutor, só no Fórum”, como me contou emocionado, o Carlão, dono do estabelecimento. Com isso, fez boas amizades por aqui. Não vou elencar nomes de amigos e parceiros de serestas que fez em Valinhos, pois, correria o risco de me esquecer de alguém.
Justiça para todos, sem distinção!
Sempre correto, Violante não poupava ninguém. Na cidade de Paulo de Faria, onde foi juiz, logo que chegou já mandou prender o filho do presidente da Câmara, que vivia aprontando na cidade, sem que nada acontecesse com ele. Houve reação: os políticos e fazendeiros do local chegaram até a procurá-lo em casa, para tirar o rapaz da prisão, mas ele o manteve lá, pelo tempo necessário que a lei o permitia. E foi logo avisando: “se vocês querem levar filet mignon e uísque na cadeia, só autorizo se for para todos os detentos”.
Depois do episódio o rapaz se corrigiu e passou a respeitar as pessoas e as leis, pelo menos na cidade. Esta foi sua primeira ação de boas-vindas àquele pacato município. Depois de algum tempo, os moradores de Paulo de Faria o conheceram melhor e passaram a respeitá-lo e a admirá-lo também. Lá, como em todos os lugares por onde passou, Violante recebeu da Câmara o título de Cidadão Honorário pelos serviços prestados à comunidade.
Enfim, não tinha nada a temer: era incorruptível! Lembro-me de algumas vezes em que tentaram nos presentear, ou seja, chegamos a receber em casa, presentes de pessoas que estavam com processos, sob a sua jurisdição, ao que ele mandava devolvê-los imediatamente. Certa vez mandaram-nos uma televisão, que foi logo despachada.
Em outra ocasião, uma senhora nos enviou uma bandeja de prata coberta com papel celofane e cheia de bombons finos. Ai que vontade que deu!! Mal o presente chegou e meu pai o mandou de volta para a nossa tristeza, que àquela época não entendíamos nada e o achávamos mal educado! Minha mãe tentava nos explicar, mas nós fazíamos questão de não entender mesmo!
Enfrentando os desmandos do poder
O doutor Violante era um filósofo em sua essência, gostava de contestar, de criar coisas novas, enfim, tinha sempre um projeto “na manga do paletó”: quase todos com veio social, favorecendo crianças abandonadas, presos, enfim, os excluídos … ou planos que visavam à melhoria de algum serviço prestado á comunidade.
Certa vez, no final do regime militar, o senhor Golberi do Couto e Silva presidia uma grande multinacional fabricante de um produto químico usado na guerra do Vietnã. Como os estoques ainda eram grandes ao final do conflito, o governo decidiu que os plantadores de laranja deveriam usá-lo no combate ao cancro-cítrico, praga que acomete as plantações de laranja, para que a multinacional não amargasse o seu “justo” prejuízo, é claro! Porém, depois de aplicado o produto, o solo ficava inutilizado durante anos, inviabilizando qualquer plantio. O produto era devastador!!
Na época, o governo “sugeria” a todos os plantadores de laranja que usassem o tal do Tordon, se não me falha a memória. A colônia japonesa de Tupã e lavradores dos arredores sustentavam suas famílias com a lavoura e mantinham os filhos em faculdades, especialmente de engenharias e medicina fora dali. Eles ficaram desesperados com a decisão e foram falar com o doutor Violante, “nossa última esperança”, como diziam”. Meu pai achou tudo aquilo uma afronta à dignidade do cidadão e resolveu enfrentar os homens!
A polícia de Tupã, por determinação judicial, ficou vários dias de plantão na entrada da cidade e ninguém conseguiu descarregar ali o produto químico, apesar das inúmeras tentativas. A multinacional, inconformada, enviou seus relações públicas e seu departamento jurídico, representado por advogados brilhantes, mas a argumentação do doutor Violante foi muito mais sólida e convincente que a deles.
Só me lembro de quando ouvia uma entrevista ao vivo pela Rádio Clube de Tupã e um dos representantes da empresa dizia-lhe que o cigarro que ele estava fumando era muito mais tóxico que o Tordon, fabricado pela multinacional, ao que ele rebateu imediatamente dizendo então que enrolaria em papel um pouco do produto para que o funcionário da empresa o tragasse. E acrescentou: o cigarro que eu fumo só prejudica a minha saúde e não a de uma cidade inteira! O rapaz ficou desorientado e não soube mais o que dizer.
Para resumir, a região de Tupã foi uma das poucas que preservou o solo de suas lavouras! Outros municípios também se posicionaram contra o uso do Tordon, depois que meu pai enfrentou a situação. Eu era apenas uma menininha curiosa, mas lembro-me dos comentários sobre as matérias veiculadas pelo “Estadão” até mesmo em seus editoriais. Houve boa repercussão. Os japoneses e lavradores de Tupã e região o agradeceram pelo resto da vida! Meu pai detestava duas coisas: corruptos e ditaduras, tanto de direita quanto de esquerda e nisso eu estou com ele também! Aliás, aprendi desde cedo a lutar por meus ideais, a não desistir quando tudo parece perdido, a ser ética …
Preconceitos, música e outras convicções!
Meu pai e eu somos muito parecidos e lutávamos contra os nossos preconceitos sempre! Às vezes ele se esquecia de suas convicções democráticas e se tornava um pouco autoritário, herança que também recebemos dele! Minha mãe sempre dizia que “aqui em casa não tem índio, só caciques. Assim fica difícil porque eu também não vou ser índio!” Ela esbravejava e depois sorria … Bons tempos … Foi também com ele que aprendi a gostar de Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Cartola, Pixinguinha, Adoniran Barbosa e outras pérolas da MPB, sem mencionar ainda os grandes seresteiros como Altemar Dutra, Sílvio Caldas, Orlando Silva … Certa vez recebemos em nossa casa o Francisco Petrônio, compositor e cantor de valsas e serestas, entre elas, “O Baile da Saudade”. Ele esteve em Tupã para se apresentar num dos clubes locais e ficou sabendo que o Violante cantava suas composições em serestas. Tratou logo de conhecê-lo!
Meu pai era desprovido de preconceitos raciais e sociais ….mas devo dizer com franqueza que ele ostentava algumas intolerâncias: era avesso à futilidades e não gostava mesmo, por exemplo, de Big Brother Brasil e qualquer outro tipo de reality show, assim como os programas de auditório em sua maioria. Os classificava como “a apoteose da mediocridade”. Acho que isso eu também aprendi com ele.
Violante era um líder nato. Por onde passava, em pouco tempo estava liderando qualquer coisa. Assim, idealizou a fundação de uma faculdade de Administração de Empresas em Umuarama, no Paraná, para um grupo de professores de Tupã. Ele também gostava de ensinar. Por isso, deu aulas em colégios, como professor de português concursado; e em faculdades, nas disciplinas de economia, filosofia, direito civil e administrativo em cidades como Marília, Paulo de Faria, Pacaembu, Osvaldo Cruz, Lins e Tupã, nesta última permanecemos ao longo de doze anos.
Projetos, sonhos e paixão pelo campo
Além de sonhador, meu pai era apaixonado pelo campo. Por isso, sempre teve um sítio ou uma chácara para os fins de semana. Os parentes, especialmente os jovens, gostavam de passar férias em nossa casa. Lembro-me de uma cena em que ele nos acordava às cinco da manhã para plantar eucaliptos no “Sítio do Lago”. A sua alegria e empolgação era tanta que parecia que ia nos levar para a Disney ou coisa parecida. Para cada período de férias ele tinha um projeto novo. Gostava de por as mãos na terra, de plantar, de colher, ele próprio, e contagiava a todos, que acabavam fazendo o que ele idealizava e sem reclamar! Eu particularmente não apreciava muito essa programação matinal, já que sou completamente noturna. Preferia sempre as serestas na madrugada … Às vezes aderia ao programa rural porque acabava me deixando levar por sua paixão pela terra, algo que só fui entender melhor depois de assistir ao clássico “E o Vento Levou” …
Quando me formei em jornalismo e decidimos fazer o jornal VIVA, de Vinhedo e Valinhos, ele se encantou com a ideia e passamos a sonhar juntos. Ele sempre dava muito apoio e achava interessante reunir pessoas combativas, de partidos políticos diferentes, com outras ideias, diversas das minhas. Enfim, me dizia que “aí estava a beleza da vida e que eu era ainda muito jovem e precisava aprender coisas novas, especialmente com as pessoas que formavam a nossa equipe do jornal: Pozzuto, Heitor, Xinha, Gérsio, Lílian, Germano, Teka Pinheiro, Kiko … bons amigos, com quem aprendi bastante!
Foi minha fase romântica do jornalismo! Nunca me esqueço do discurso de meu pai no dia da inauguração do VIVA, que contou também com a presença de autoridades locais e amigos. Sua fala foi bastante filosófica e nela ele mostrava a importância de se ter ideais na vida, em qualquer idade, dando boas-vindas ao nosso combativo tablóide! Ai que saudades de tudo isso … Bons tempos aqueles!
Violante tinha também espírito empreendedor. A construção civil era outra de suas paixões, herdada do pai, marceneiro e construtor. Assim, junto com o amigo Domingos Bozzo, pedreiro competente, quem levantou os primeiros tijolos da nossa casa da Rua Itália aqui em Valinhos, ele construiu outras benfeitorias para a família: casas nas chácaras e a própria moradia, no “Recanto das Palmeiras”, idealizada cuidadosamente por ele e onde até hoje vive minha mãe, cercada de suas filhas.
Foi assim que um galpão de frutas que em outros tempos era uma igreja evangélica, transformou-se na casa que hoje vive a Eny, como é conhecida a minha mãe. Meu pai conseguia realizar os sonhos mais sonhados durante o ano. Minha mãe gestava os filhos e ele, os seus projetos em todos os campos do ser. E depois os colocava em prática. O nome do pequeno “condomínio” onde moramos foi escolhido por mim e por ele, numa noite em que jantávamos juntos.
Eu insistia que o local tivesse um nome e assim o batizamos de “Recanto das Palmeiras”, já que ele havia plantado ali, inúmeras delas, com suas próprias mãos. Quando olho para aquelas palmeiras imponentes, balouçando suas faias, visualizo o meu pai sorrindo em meio aquelas folhagens … Como nós éramos felizes!
No final da vida ele reunia a família: seu último projeto!
Nos últimos seis anos antes de sua morte, que ocorreu no dia 6 de novembro de 2007, depois de sofrer uma amputação da perna esquerda, ele ficou debilitado física e emocionalmente. Perdeu muito do brilho nos olhos, dificilmente cantava suas serestas, pois sentia muitas dores. Apesar de tudo isso, uma vez por mês marcava um churrasco com a família: todos os filhos, genros, noras e netos compareciam.
O Tucho, meu irmão mais velho, vinha de Ribeirão Preto; o Beto, de Araraquara e a Lia, de Rio Claro, onde morava naquela época. Enfim, ele simplesmente mandava avisar a data e o horário do evento.
Não havia quem ousasse faltar ao compromisso. A condição que impúnhamos era que houvesse violão e que ele cantasse. Aí meu pai soltava a voz e o ”Café Nice”, juntamente com a “Casinha Branca”, inauguravam a reunião e acabaram se transformando definitivamente nos hinos da família, ou melhor, dele, além de muitas outras, como Chuá Chuá, A Chalana , Samba da Bênção, de Vinícius de Moraes …
Ele passava a semana toda preparando a reunião e ia pessoalmente ao açougue do Carlão escolher a carne do churrasco. Naquele período os olhos dele voltavam a
brilhar mais. O problema é que sentia muitas dores na perna e não havia remédio que “desse conta” de tanto sofrimento. Isso acabava nos entristecendo também. Nós sempre o visitávamos. Ele morreu cercado da família. Uma vez um juiz muito amigo do meu pai veio de Sorocaba até Valinhos para vê-lo e deu o recado: “É, Violante, você conseguiu construir o seu inferninho particular, trazendo os filhos para morarem a sua volta”. Rimos muito naquele dia, pois o compadre, como meu pai o chamava, sempre foi um amigo leal e dizia tudo o que pensava.
Bom, eu passaria o resta da semana escrevendo sobre ele e suas peculiaridades, seus projetos inovadores, sobre o esposo dedicado, o pai presente, o avô carinhoso, o amigo leal e o homem público exemplar que ele foi. Mas, como a vida é exigente com todos, preciso trabalhar, sonhar, idealizar planos, cuidar da família, enfim, viver como ele me ensinou…
A você, meu querido pai, só tenho a agradecer e a dizer que o amo muito e que, para mim, você continua vivo na memória e no coração, nos pequenos e grandes acontecimentos da minha vida e nos exemplos deixados. Durma o sono dos justos, mas não se esqueça de gestar os seus projetos aí em cima!
Da sua filha e eterna admiradora!