Adauto Damásio1
Nasci em Valinhos, aqui sempre vivi e aqui sempre paguei meus impostos. Planto tâmaras. No deserto.
Valinhos abordou o tema da educação pública municipal pelo “olhar” da assistência social desde os primórdios da municipalização do ensino, nos anos 90 do século XX. Em função dessa abordagem cultural, também uma opção política de todas as gestões públicas até hoje, o amadorismo, o clientelismo e o provincianismo são características das práticas administrativas e pedagógicas da Secretaria da Educação do município. Essas práticas sempre resultaram em avaliações insatisfatórias nos exames externos, em especial na composição que resulta no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB).
Tal abordagem sobre o ensino público municipal sempre foi rigorosamente consonante com o espírito privatista da mentalidade de suas elites proprietárias: em Valinhos, educação, saúde, cultura e lazer são valorizados em espaços particulares. O “público” é para os pobres que não conseguem pagar serviços particulares, segundo a mentalidade vigente. Morar em bairros abertos é para os pobres e para a classe média baixa; os condomínios são para a classe média alta e para os ricos. Não é coincidência a instalação de inúmeras escolas particulares de Ensino Básico de altíssimo padrão no município.
Em consequência dessas práticas e dessa mentalidade, o corpo de profissionais da educação pública municipal foi desvalorizado nos últimos anos e passaram a ocorrer inúmeras exonerações do cargo de professor. Mestres e doutores foram (e continuam indo) para outras redes de ensino, tais como Vinhedo, Campinas e Paulínia, pois em vários municípios da Região Metropolitana de Campinas, a remuneração para esses profissionais é maior. Vários professores da Rede Municipal de Valinhos estão apenas aguardando serem convocados em outros concursos públicos das cidades da região para pedirem exoneração do cargo em Valinhos. O argumento é liberal e estamos nos referindo a lei da oferta e da procura: os professores mais gabaritados, com melhor formação, raramente ficam na rede municipal de Valinhos. Bons profissionais continuam a trabalhar nessa rede pública por outras conveniências particulares.
A Secretaria da Educação de Valinhos sempre foi um espaço onde o poder do clientelismo político esteve presente, para além do amadorismo e do provincianismo. Pasmem, na pontuação de professores da rede municipal de Valinhos não há diferenciação entre artigos e livros publicados, não são levados em consideração cursos feitos pelos professores fora do país (inclusive para professores de inglês!!!), existem limites para apresentação de certificados de cursos feitos, mestrados e doutorados são desvalorizados, experiência profissional total nunca foi levada em consideração, o corporativismo abunda em todas as normas internas e muitos profissionais da educação de altíssima qualidade não são selecionados para compor projetos educacionais por não participarem da corte política à prefeitos, secretários, diretores pedagógicos e supervisores.
Assim o IDEB de Valinhos “patina”, como segue:
VALINHOS IDEB – EDUCAÇÃO BÁSICA – ENSINO FUNDAMENTAL
(Fonte: IBGE Cidades)
2021 Anos iniciais Público Municipal = 6,2.
No estado de São Paulo: ranking 238º de 645
No Brasil: ranking 941º de 5.568
Na RMC: 11º de 20
2021 Anos finais Público Municipal = 5,4
No estado de São Paulo: ranking 104º de 645
No Brasil: ranking 416º de 5.568
Na RMC: ranking 10º de 20
O marketing oficial das elites de Valinhos propagandeia a alta qualidade de vida do município, medido pelo seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e esconde, propositadamente, o fracasso de seu projeto de educação pública municipal. Centenas de municípios com IDH mais baixo que o de Valinhos possuem índices educacionais públicos municipais mais elevados, como demonstram os dados.
No entanto, as variáveis da história sempre mudam e, recentemente, o rendimento das escolas públicas municipais nas provas externas passou a ter importância no recebimento de impostos pelo município. No estado de São Paulo, foi criado o ICMS Educacional por meio da Lei 424/22. O resumo da lei é simples: municípios que apresentarem melhorias nas provas externas receberão mais recursos das verbas estaduais oriundas do ICMS.
Em Valinhos, município marcado pelas características já mencionadas, o que propõe a gestão pública e a Secretaria da Educação para 2024? Quais são as medidas adotadas para melhoria da aprendizagem dos estudantes no Ensino Fundamental?
Poderíamos pensar que os gestores públicos já entrassem no ano letivo de 2024 com a grata notícia de um aumento na carga horária diária dos estudantes em trabalho pedagógico, saindo das miseráveis 3 horas e ½ atuais no EFI para 5 horas diárias, como ocorre em qualquer país que se preocupe com educação e como ocorre em praticamente todas as cidades da Região Metropolitana de Campinas. No EFII, poderíamos esperar que houvesse aumento da carga horária das atuais 4 horas e 10 minutos para 5 horas. A média mundial é de 5 horas diárias de permanência em sala de aula com realização de trabalhos pedagógicos. Nos países desenvolvidos, estudantes do Ensino Fundamental tem carga horária diária acima de 7 horas. Na Coreia do Sul, a média da educação pública passa de 8 horas diárias.
Poderíamos também pensar que os gestores públicos da educação estivessem em vias de colocar em prática um vigoroso projeto de Formação Continuada para os profissionais da educação, previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB – Lei 9.394 de 1996), na antiga Base Nacional Curricular Comum (BNCC – Lei de 14/12/2008), na atual Base Nacional Curricular Comum (BNCC – Lei 14/12/2018) e normatizada pela Resolução CNE/CP nº 1, de 27 de outubro de 2020. Afinal, todos precisam estudar e entender o que são competências e habilidades. Inclusive, tal obrigação foi reafirmada na Lei nº 14.817 de 16 de janeiro de 2024.
Poderíamos pensar, talvez, que os gestores educacionais apresentassem um projeto que tornasse muito mais vigorosas as atividades de reforço escolar, aumentando as míseras horas atuais (um contra período para português e matemática no EFII). Inclusive, acreditamos que poderíamos haver a boa notícia de que Valinhos aderiu ao Programa Escola em Tempo Integral (PETI) do governo federal, instituído pela Lei 14.640 de 31 de julho de 2023, projetando a conversão de todas as suas escolas em tempo integral, algo que existe em todos os países desenvolvidos do planeta. Seria uma medida de ótima consequência para a melhoria do IDEB, visto que projetaria uma carga horária semanal de 36 horas para os estudantes do Ensino Fundamental. Aderir ao PETI significaria obter verbas federais e apoio pedagógico de alta qualidade.
Poderíamos também pensar que a administração pública apresentasse um plano de profissionalização do grupo de gestores e burocratas instalados na Secretaria da Educação, com a qualificação de seus colaboradores do setor pedagógico, colocando fim às políticas clientelistas de recrutamento de profissionais da educação no município. Ademais, poderíamos pensar na criação de coletivos de profissionais de educação que buscassem metas específicas, em especial as que se relacionam com a melhoria da aprendizagem. Mais do que isso, poderíamos pensar que o ano letivo de 2024 tivesse início com a notícia de criação de uma robusta estrutura pedagógica que a Secretaria da Educação nunca teve, findando a velha prática de incluir agregados políticos camaradas em seus quadros.
Poderíamos pensar que houvesse a notícia de uma medida para construir uma reforma administrativa na Secretaria da Educação que garantisse a melhoria da qualidade técnica de seus quadros dirigentes. Poderíamos pensar na realização de outro Concurso Público que atraísse, efetivamente, profissionais da educação de altíssima qualidade para compor os quadros do magistério e os demais que compõem a estrutura da rede municipal de ensino.
Poderíamos pensar que houvesse a notícia de que um novo Estatuto do Magistério estivesse já sendo aprovado pela Câmara de Vereadores com um teor que elevasse o grau de profissionalização dos que trabalham com educação pública municipal em Valinhos, erradicasse normas corporativistas que dificultam a medição de desempenho individual e coletivo dos professores, premiasse os professores que estudam todos ao anos e apresentam desempenho satisfatório na aprendizagem de seus alunos. Poderíamos pensar que houvesse alguma notícia sobre a aprovação de um novo Estatuto do Magistério que estimulasse a dedicação exclusiva dos professores à rede municipal com cargas de trabalho de 44 horas semanais.
Poderíamos até imaginar que as escolas passariam a ter um Serviço de Orientação ao Estudante (SOE), com um(a) psicólogo(a) escolar atendendo aos alunos na unidade escolar e permitindo que os coordenadores pedagógicos tivessem tempo para trabalhar com… coordenação pedagógica.
Assim, poderíamos ter a notícia de que o ano de 2024 seria melhor para todos e que nosso IDEB iria melhorar muito! Eu até sonhei com isso…
Note-se que, até esse momento, não abordamos o tema do necessário reajuste salarial para os profissionais da educação. A despeito de ser necessário, senão fundamental, poderíamos imaginar que as outras medidas já mencionadas motivassem de tal forma o corpo docente e todos os profissionais da educação, além de toda a comunidade escolar, que fossem suficientes para uma grande transformação na educação pública municipal. Assim, com tantas medidas estruturais positivas, os profissionais da educação talvez pudessem “esquecer” a abrupta queda salarial dos últimos anos, além dos ataques ideológicos que sofreram, resultando na sua aviltante desvalorização social. Talvez, por um milagre, isso ocorresse. Então, não abordaremos os baixos salários de Valinhos.
Lembremos que a lei que relaciona verbas estaduais do ICMS a resultados em provas externas das redes públicas municipais de ensino é de 2022 e a gestão municipal, em especial a educacional, teve um bom tempo para planejar mudanças. Claro que tais mudanças já deveriam ter ocorrido anteriormente sem a preocupação com a questão do ICMS, mas trata-se de incentivo que causa impacto no orçamento municipal.
Eis que chegamos a 2024! O que se apresenta no burgo valinhense?
Na primeira reunião de professores de 2024, ocorrida em 02 de fevereiro de 2024, a pauta foi comum a todas as escolas e tais reuniões ocorreram em todas elas com os professores em suas respectivas sedes. Não houve uma reunião geral com a presença de todos os professores num mesmo local.
O tema central da reunião foi uma apresentação unificada com elementos corriqueiros e outros nem tanto: mensagens motivacionais de praxe e um vídeo de Christian Dunker sobre o tema da “escuta”. Como sabemos, Dunker é, atualmente, um dos mais importantes intelectuais (psicanalista) do Brasil e esse vídeo busca refletir sobre a “escuta não narcísica”. Mesmo que eu já o tenha assistido dezenas de vezes, considerei interessante.
O que foi apresentado depois do vídeo de Dunker? Um conjunto de medidas que serão adotadas pela Secretaria da Educação em 2024. Um resumo das medidas, na ótica desse que vos escreve: gestão pedagógica mais próxima das escolas, da sala de aula e monitoramento do trabalho dos professores para que ocorram melhorias nos exames externos que medem não apenas conhecimento conteudista, mas também e principalmente competências e habilidades previstas na Nova BNCC (Base Nacional Curricular Comum). Também foi apresentado o Currículo Municipal de Valinhos. Na prática, o Currículo Municipal de Valinhos define os conteúdos, habilidades e competências para os vários anos do Ensino Fundamental. Na apresentação também havia alguns outros informes menos importantes.
Muito bem! Algo mais? Não. O espetáculo foi replicado em todas as unidades escolares do município tendo à frente seus gestores locais.
A apresentação foi resumida a esses temas citados e deve ser entendida da seguinte forma: professores, vamos cobrar mais desempenho de todos vocês e vamos monitorar vosso trabalho de maneira presencial. Não estamos abertos a discussão sobre isso. Trata-se de um ordem. Virem-se para estudar sozinhos e entender o que são habilidades e competências. Talvez faremos algumas formações ao longo do ano, mas não esperem que seja algo consistente, pois não serão cursos “de fato” como pedem as leis e normas do país. A palavra “ordem” foi repetida como um mantra da Secretaria da Educação.
O vídeo com a mensagem de Dunker, ao final e ao cabo da reunião, pareceu estar muito fora de contexto, pois foi interpretado pelos gestores educacionais valinhenses como uma forma de afirmar aos professores: dispam-se de seus narcisismos e cumpram nossas ordens. Claro, não havia como esperar melhor interpretação do conteúdo claramente filosófico, psicanalítico e antropológico do vídeo por parte da intelectualmente limitada burocracia da Secretaria da Educação de Valinhos.
Aumentar o tempo de trabalho pedagógico dos estudantes? Não. Aplicar um Programa consistente de Formação Continuada? Não. Ampliar o limitado programa de reforço escolar? Não. Profissionalizar a gestão pedagógica da Secretaria da Educação? Não. Reformar estruturas que nunca funcionaram a contento? Não. Escola em Tempo Integral em todas as unidades escolares? Não. Propor um novo Estatuto do Magistério? Não. Ouvir os pais, os gestores das unidades escolares, os professores e a comunidade escolar? Não. Realização de concurso público para educação, visto que não há mais nenhum em vigência? Não. Psicólogo escolar na unidade escolar? Não.
Nada!
Karl Marx escreveu, em sua obra que analisou o golpe de estado de Luís Bonaparte na França, em 1852:
“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” (MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 19)
Não acreditamos que o que aconteceu no dia 02 de fevereiro de 2024 seja um fato de grande importância na história do mundo. Pelo contrário, foi insignificante até para a história de Valinhos. Mas a tragédia na educação pública municipal em Valinhos teve início nos anos 90. Vivemos o segundo momento que se repete mais vezes do que o pensador alemão imaginou.
Nasci em Valinhos, aqui sempre vivi e aqui sempre paguei meus impostos. Planto tâmaras. No deserto.
1 – Mestre em História pela Unicamp e Pedagogo pela Uninter. Professor das Redes Públicas Municipais de Valinhos e Campinas. Valinhense desde 1964.