*Por Fabio Cerqueira
Para evitar um novo golpe é preciso preservar as tristes memórias.
Quem visita a cidade colombiana de Medellín em 2024 sem conhecer sua história pode até não acreditar no seu passado de extrema violência, numa época não tão distante em que o local era o centro da disputa dos cartéis que comandavam o tráfico de drogas no país vizinho. Mas basta um olhar atento para descobrir as cicatrizes que a década de 1990 deixou na cidade.
No centro da cidade, mais especificamente no Parque San Antonio, a escultura El Pájaro (o Pássaro), de Fernando Botero, curiosamente produzida como um símbolo da paz, hoje expõe toneladas de metal contorcido. Explodida com 10 kg de dinamite em junho de 1995, num atentado que deixou 23 pessoas mortas, a escultura foi deixada no local sem nenhum restauro a pedido do próprio artista.
A identidade de um povo se estabelece a partir das relações criadas pelos indivíduos que o constituem, e que faz com se sintam pertencentes a uma comunidade. Essa identidade é reflexo direto da história deste povo, e se transforma na medida em que os elementos desta comunidade são substituídos, fazendo nascer novos valores, ao mesmo tempo em que outros podem ser esquecidos. Os valores mais relevantes para a constituição do senso de comunidade deste povo e que refletem a sua herança cultural são passados entre as gerações através das tradições, da arte e dos elementos históricos. Seguindo essa lógica, El Pájaro de Botero foi conservado propositalmente como um monumento à memória de um passado que não pode ser esquecido e que não se quer mais repetir.
Há 60 anos o Brasil deu início a um dos períodos mais tristes de sua história. O golpe civil-militar, patrocinado pela elite e insuflado pelas igrejas sob a desculpa de combate ao comunismo – mas que na verdade evitava as necessárias reformas de base que nos fazem falta até hoje -, se seguiu de anos de violência estatal, perseguição política, cerceamento de liberdade, censura, tortura e morte. A redemocratização do Brasil, no entanto, foi e ainda é marcada por inúmeras tentativas de apagar da nossa memória coletiva os horrores deste período. A anistia dos crimes cometidos pelos militares nos 21 anos em que estiveram no poder é o símbolo mais profundo de como o Brasil tenta esconder seu passado, e as recentes revelações sobre os bastidores do 08 de janeiro de 2023 deixam claro como busca-se repetir aquele passado no presente.
Os moradores mais jovens da cidade de Medellín nunca viveram os piores anos de guerra dos cartéis, mas convivem diariamente com elementos que os fazem reconhecer a importância de evitar uma nova escalada de violência. Lembrar para evitar.
Dedico este texto a Antonio Mamoni, ex-vice-prefeito da cidade de Valinhos, preso e torturado pela ditadura acusado de subversão simplesmente por exercer atividades partidárias. Como cidadãos valinhenses, é nosso dever não deixar sua história ser esquecida, para que as novas gerações jamais permitam que sua história se repita.
*Fabio Cerqueira é gestor e produtor cultural, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-Campinas, Especialista em Cultura e Educação pela FLACSO Brasil e Mestrando no Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais da Unicamp. Presidente do PSOL Valinhos.