Adauto Damásio *
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas
A Constituição de 1988 criou no Brasil, do ponto de vista jurídico, uma sociedade de direitos no contexto de um Estado representativo. Tendo como inspiração os regimes europeus, buscou criar aqui uma “social-democracia morena” para parafrasear e lembrar Leonel Brizola. Assim, o Estado passou a trabalhar visando criar e oferecer serviços públicos para toda a população, tais como Ensino Básico, Sistemas Público de Saúde (SUS), Seguro Desemprego, entre tantos outros. Claro, ao longo dos últimos 35 anos, as contradições de um orçamento público limitado pelo domínio político do capital financeiro trataram de limitar ao máximo o alcance dessas políticas públicas. Mas de forma geral, de um jeito ou de outro, a ideia de um Estado representativo no qual os cidadãos possuem direitos foi difundida com algum êxito na cultura política, inclusive na cultura popular.
O serviço denominado “Educação Pública” teve centralidade em todo esse processo histórico. A universalização do acesso ao Ensino Fundamental, com a criação do FUNDEF, foi conquistada. Inspirado no FUNDEF, foi criado o FUNDEB. Os índices de analfabetismo total tiveram acentuada queda em relação aos meados do século XX. A partir desse momento, tratou-se de discutir a melhoria na qualidade de ensino público.
Claro que houve atrelamento imediato da discussão sobre qualidade no ensino público com a remuneração dos profissionais da educação, em especial a dos professores. Não há uma centelha de dúvida de que os melhores professores optam por trabalhar em escolas que lhes pagam mais, visto que magistério não é sacerdócio como certamente desejam fazer crer grande parte das canhestras elites e das classes médias iletradas do Brasil. A velha e carcomida tradição religiosa de ensino e de escola foi, gradativamente, sendo substituída por práticas pedagógicas e por concepções de educação voltadas para o ensino e aprendizagem da ciência. O ideal republicano de um Estado laico vai gradativamente sendo alcançado. Para tal objetivo, era necessário transformar a atividade de professor em profissão. Tal transição ainda está em andamento no âmbito da cultura geral e no entendimento do Estado em todos os seus poderes, inclusive no poder judiciário.
No caso do estado de São Paulo, com a municipalização do ensino infantil e fundamental, muitos municípios passaram a produzir uma relativa valorização dos profissionais da educação do ponto de vista financeiro e o apogeu dessa valorização foi a implantação da lei do 1/3 em muitos deles, inclusive em Valinhos. Em Valinhos, isso deu origem a um enorme preconceito dentro do próprio funcionalismo público, historicamente caraterizado pelo amadorismo e pelo clientelismo. A sociedade aprovou essa valorização com ressalvas e tais ressalvas aumentaram a partir da crise econômica de 2008 que chegou ao Brasil como uma grande onda e não somente como uma marolinha.
No caso de Valinhos, a crise financeira do país e do planeta foi acompanhada do crescimento da crise financeira da Prefeitura Municipal e resultou no simples corte de 20% do salário dos profissionais de educação, além das outras carreiras, em 2018. Lembro de um cidadão que produziu um vídeo em comemoração ao evento. A velha bazófia liberal estava em plena hegemonia política e cultural. Acrescente-se a isso a gigantesca campanha de desvalorização moral e social dos professores, adjetivados pelas canhestras elites e pelas classes médias iletradas do Brasil e de Valinhos como “doutrinadores”, algo próprio de suas respectivas ignorâncias sobre o quase nulo papel da escola na formação política e partidária dos estudantes. A esses ignorantes da direita e extrema-direita, juntem-se os da esquerda e extrema-esquerda que acreditam que o papel da escola é fomentar a revolução do proletariado. Nos extremos, esquerda e direita sempre se encontram… Com Stálin ou com Hitler.
Ademais, no espaço de tempo entre 1988 e 2024, o Estado representativo no Brasil mostrou seus limites e a sociedade continuou distante dos poderes constituídos, sem os instrumentos básicos de cidadania efetiva de uma democracia liberal autêntica, tais como as práticas dos plebiscitos, dos referendos ou do controle sobre o orçamento público; os Conselhos Municipais foram gradativamente sendo ignorados ou cooptados pelo poder executivo. Isso ocorreu e continua ocorrendo praticamente em todo o planeta: a democracia está em crise. O Plano Diretor de Valinhos, recentemente aprovado, é a comprovação de um Estado divorciado da “sociedade”.
Como reagiu a “sociedade” a essa crise da representatividade ao longo dos últimos 35 anos? Ela produziu uma enorme fragmentação de demandas que foram atomizadas em temas de interesse de grupos específicos. Assim, surgiram organizações sociais preocupadas com os animais domésticos, os defensores dos direitos da população não-heterossexual, os defensores dos direitos dos afro-brasileiros, os grupos preocupados com crianças e adolescentes com transtornos variados que impactam na aprendizagem escolar e na interação social, os grupos preservacionistas ambientais, os preocupados com a valorização de práticas esportivas, entre outros. Em alguma medida, a criação desses grupos auxiliou na desconexão entre Estado e “sociedade”, visto que tais demandas setoriais colaboraram para que as reais causas de suas demandas não fossem atendidas. Em Valinhos, a criação desses grupos políticos setoriais desviou a atenção dos eleitores que não perceberam o processo histórico mais amplo de gentrificação do território municipal ou a ausência crescente da “sociedade” no efetivo controle orçamentário do Estado, entre outras questões centrais para o efetivo exercício da cidadania plena. A maioria também não se atentou para o papel mais importante do trabalho dos vereadores que é, sem dúvida, fiscalizar as ações do poder executivo e não o de serem sócios dele.
Sobre as demandas geradas pela fragmentação das expectativas de cidadania, todas elas chegaram às escolas públicas sob diversas formas: pressões da “sociedade”, determinações judiciais, pressão do Ministério Público, legislações adicionais às já existentes, campanha aberta contra professores para que eles atendam a todas essas demandas, comentários preconceituosos em redes sociais… As transformações do mercado de trabalho também deram à escola outra demanda: educar os filhos de pais que trabalham o dia todo e lutam pela sobrevivência material. A escola se transformou no terreno de entrada da crítica política à ação do Estado. A escola passou a ser vista como a instituição que deve resolver todas as demandas da sociedade, exceto àquelas que devem ser encaminhadas para um posto de saúde ou para o UPA.
Verdade deve ser dita, isso ocorreu também com o sistema de saúde pública e a “sociedade” organizada em demandas atomizadas passou a criticar médicos e enfermeiros. Era preciso buscar culpados no contexto cultural de tradição cristã que limita o raciocínio político na luta entre o “bem” e o “mal”. Na ausência da possibilidade de depor governantes e vereadores por meio do recall de mandatos ou de votar em plebiscitos sobre temas centrais da urbe ou de tirar a bunda do sofá e participar ativamente das pressões sobre as ações do poder executivo e do legislativo, muitos covardes e calhordas, eleitores de péssima qualidade, miraram seus fuzis contra profissionais de carreira que estudaram ao longo de muitos e muitos anos para conquistar uma profissão e foram aprovados em concursos públicos.
Sobre o tema dessa reflexão, sobre qual escola pública estamos falando?
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Abertura do Diário Escolar
Chego na escola às 06h35. Assino o livro-ponto. Encho minha garrafa de água. Pego a pasta da sala. Chego na sala e arrumo as carteiras, pois estão fora do lugar. Às vezes, também recolho algum papel que está no chão ou apago a lousa de madeira. Deposito um livro didático em cada carteira. Ligo os aparelhos: meu notebook da Prefeitura de Campinas e o Data Show alugado pela atual gestão municipal de Valinhos. Tenho sorte de estar numa escola que tem ar-condicionado, aparelhos conquistados com recursos da própria escola e não com os da Prefeitura. Na maioria das salas de aula da rede municipal de ensino de Valinhos, os termômetros já estão marcando 25ºC. Até 11h25m, chegará aos 35ºC com ventiladores espalhando ar quente pela sala. Aulas e atividades já estão preparadas. Faltam 10 minutos para as 07h00. Volto meu olhar para a escola toda.
A escola é cinzenta e segue o padrão arquitetônico das cadeias e manicômios. Prédio escolar construído com “puxadinhos” nos últimos 30 anos, piso irregular em todas as áreas da escola, carteiras e cadeiras velhas que não são trocadas a mais de 10 anos, banheiros feios e precários, armários novos que chegaram em 2023 e que não suportam o peso de muitos livros, cozinha minúscula onde duas merendeiras operam “milagres” diários de mobilidade, ambiente de pátio que também serve de refeitório, biblioteca minúscula construída com muito esforço pelo gestor da unidade escolar. Quando chove… água pelos corredores. Olho para o material de limpeza de carteiras que eu mesmo comprei e vejo as duas únicas funcionárias da limpeza trabalhando numa escola de 800 alunos, 16 salas de aula, 8 banheiros, pátios e corredores. Vou até a quadra de esportes e no caminho verifico que temos apenas dois monitores de pátio para 800 alunos. Vejo a quadra de esportes sem piso emborrachado e com avarias. Pintam a quadra às vezes para parecer que houve uma reforma. Lembro que eu não posso faltar ao trabalho, mesmo tendo trabalhado nas últimas eleições, pois Valinhos não tem a carreira de professor-adjunto. Lembro que sou mestre em História e que alguns amigos são até doutores em suas áreas de conhecimento. Lembro que esses títulos aqui não valem nada. Lembro que não temos nenhum serviço de apoio para alunos com dificuldades de aprendizagem e/ou quaisquer transtornos na unidade escolar e que os dois ou três psicólogos escolares contratados pela prefeitura têm sede no prédio da Secretaria da Educação; lembro também que o Ministério Público aceitou essa gambiarra. Lembro que até tenho mais um pouco de sorte, pois não leciono na última escola inaugurada em Valinhos que poderia ser doada para o governo estadual para servir de penitenciária. Minha querida, maravilhosa e saudosa diretora Dirce Antônio merece ser homenageada e lembrada em uma escola com um projeto arquitetônico de melhor qualidade.
A sala de aula já está cheia! Início da minha alegria! Crianças e adolescentes fervorosos de vida. O que tenho em minha frente? Uma sala lotada, com uma assistente (estagiária) de um aluno esmagada entre duas carteiras usadas por dois alunos. Trinta maravilhosos estudantes com todas as demandas da vida. Tenho alguns jovens com claros sinais de TEA, outros com claros trejeitos de condições sexuais não-hetero, alguns com claros sinais de traumas psicológicos variados, outros com evidentes problemas familiares de sustentabilidade material, muitos sendo educados por avós pela ausência dos pais, alguns alunos pretos que sofrem racismo diariamente nos corredores do mundo, muitos com famílias presentes e preocupadas com aprendizagem escolar, alguns que foram dormir às 02h00 da manhã pois estavam no telefone celular por ausência de tutoria responsável, algumas crianças mimadas por pais que pensam que escola é supermercado e sujeita ao Código de Defesa do Consumidor, um que está ali por decisão judicial pois acabou de sair da Fundação Casa e está fora da idade escolar… Mas o espetáculo da educação começa e só termina às 11h25m.
Lembro que não sou psicólogo e que a escola não tem nenhum serviço para tratar de saúde mental. Lembro que sou professor de História. Com apenas três aulas semanais de História, já será um milagre eu chegar ao final do programa estabelecido pela BNCC e pela cópia malfeita que em Valinhos denominaram Currículo de Valinhos. Na escola, vejo o grupo gestor trabalhando em dezenas de demandas diárias com apoio de pessoal reduzido e sob a pressão de uma Secretaria da Educação despótica, incompetente e inoperante. Lembro também que se eu desejar estudar, terei que financiar meus aperfeiçoamento profissional, pois em Valinhos não há Programa de Formação Continuada e os burocratas da Secretaria da Educação frequentam “belos” cursos que nunca chegam nas salas de aula (estão construindo currículo para eles mesmos).
Vale a pena? Vale a pena, pois minha alma não é pequena. Muito menos a alma da maioria das crianças e adolescentes que insistem em estudar com afinco, com apoio de seus familiares, e projetam seus estudos em escolas de ensino médio de alta qualidade.
Ao final do período matutino, lembro que devo trabalhar no período noturno em outra rede municipal, pois o salário de Valinhos é aviltante, apesar de a maioria da “sociedade” e dos poderes constituídos acreditarem no contrário.
Sobre as costas dessa escola e desses profissionais da educação recaíram a ira e as demandas reprimidas pela trágica história educacional do país e aquelas geradas pela fragmentação das expectativas de cidadania.
Fechamento do Diário Escolar
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Os poderes de Estado de forma geral e a “sociedade” estão tendo uma postura covarde e calhorda com as escolas públicas e seus profissionais da educação, em especial com os professores. Escolas públicas municipais em Valinhos se transformaram na entrada física visível do Estado aos “cidadãos”, local físico em que burocratas vagais, politiqueiros e carreiristas, juntamente com grupos de pressão da “sociedade” que lutam por direitos legítimos, vomitam suas demandas. Numa “sociedade” onde a esmagadora maioria da população opera mentalmente ainda no estágio concreto do pensamento (portanto, estão mentalmente abaixo dos 13 anos de idade cronológica), está fácil criticar professores, em especial para quem nunca entrou e habitou uma escola pública municipal por uma semana sequer ou para quem nunca leu e entendeu a LDB ou a BNCC. A covardia é prática de todos que querem tirar vantagem disso, em especial em período eleitoral. A constatação serve para todos os espectros políticos. O caldo de cultura herdado da escravidão colonial está espalhado naquilo que alguns chamam de “sociedade” e nas estruturas carcomidas do Estado patrimonialista. Desejam tratar professores como seres escravizados ou como operários da produção fordista. Quem deseja isso? Os poderes constituídos e a “sociedade” organizada em torno de suas demandas setoriais.
Um conjunto gigantesco de demandas e expectativas criadas pela Constituição de 1988 foram jogadas nas costas das escolas públicas com pouca ou quase nenhuma retribuição da “sociedade” que, inclusive, insiste em votar nas eleições de acordo com suas conveniências pessoais e não em função de um projeto coletivo de cidade, imperando o “voto de favor”, o “o voto de cabresto” e, hodiernamente, o “voto do cajado”. O clientelismo abunda!
Essa mesma “sociedade” que vota pensando em seus interesses particulares é aquela que deseja que a escola assuma todas as responsabilidades já citadas e que os professores exerçam o trabalho de todas as especialidades da educação e até da saúde pública.
Essa “sociedade” mesquinha, com lideranças egocêntricos e narcisistas, consumidoras do fast food do conhecimento científico virtual e usuárias de redes sociais onde espalham seus absurdos, deseja estar dentro da sala de aula para vigiar o trabalho do professor ou enfiar na sala de aula um terapeuta para que seu filho tenha tratamento diferenciado dos demais. Na verdade, o que desejam é a presença de um feitor. Tenho um alerta: não tem espaço físico nem cadeiras sobrando. Terá que trazer sua cadeira e ficar no corredor. Ou ficar dentro do armário…
Em todo esse processo já descrito, não apareceu em Valinhos nenhum grupo social e político organizado para lutar, nas escolas públicas municipais, pela melhoria da aprendizagem em matemática e do raciocínio matemático ou pela universalização ao acesso à literatura universal ou pela melhoria no desenvolvimento do raciocínio lógico-dedutivo advindo de sinapses bem articuladas. A Grécia Antiga do século V a.C. nunca habitou em Valinhos.
Claro, tal ausência é mais um sintoma da miséria cultural da cidade. Mas é mais do que isso: é parte de um projeto elitista de cidade. Para as elites ligadas ao capital imobiliário do município que mandam na cidade faz décadas, em consórcio com os poderes públicos executivo e legislativo, faz-se necessária a produção de mão-de-obra barata para o trabalho na construção e manutenção das residências nos condomínios fechados, nas lojas de comércio e de serviços. Os filhos das elites estudam em escolas de elite para ocupar postos de trabalho com alto valor agregado, enquanto os filhos dos pobres e da classe média baixa devem ocupar, segundo esse projeto, postos de trabalho com baixo valor agregado. Os grupos políticos e sociais que defendem demandas setoriais sem considerar as demandas estruturais não possuem aufklärung para entender e lutar contra isso. Não entendem que a demanda por escola pública de alta qualidade de aprendizagem é a mais importante e central para a construção de uma cidade e de uma nação. As outras demandas são legítimas e devem ser atendidas, mas não podem se sobrepor à primeira. Demandas setoriais são centrais apenas para o ego e para o narcisismo de cada um ou para outros interesses inconfessáveis. Em qualquer sistema educacional público desenvolvido do planeta é assim que funciona.
Nossa miséria é infinita. O século XIX retratado por Machado de Assis é o nosso aparente eterno presente.
* Adauto Damásio, valinhense desde 1964, é mestre em História Social pela Unicamp, pedagogo, professor das redes públicas municipais de Valinhos e Campinas.