Maria Cristina Briani[i]
Fui visitar o acampamento Marielle Vive alguns dias depois da ocupação da Fazenda Eldorado por centenas de famílias da região metropolitana de Campinas, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Eu nunca havia estado em uma ocupação do MST e em pouco mais de meia hora ficou claro pra mim que era pra valer. O acampamento já tinha uma rotina de reuniões, tarefas de organização, limpeza, alimentação, cultura, lazer e avaliação. Com meu celular fotografei o mato alto e os vários galpões sem telhado, janela, porta e assoalho, um retrato do total abandono de uma imensa área numa região altamente valorizada entre Valinhos e Itatiba, sendo cuidadosamente estocada para especulação imobiliária e, talvez, a promessa de alteração do macrozoneamento em uma futura revisão do Plano Diretor. Uma fazenda improdutiva, não condizente com a função social que toda propriedade deve cumprir, de acordo com a Constituição Federal.
A reação de parte da sociedade valinhense, aquela parcela que se esconde por detrás de uma tela de celular, tablet ou computador, despejando ignorância e preconceito nas redes antissociais, foi exatamente a que se esperava: “fora vagabundos”, “bandidos”, “invasores de propriedade privada”, “tem que ir lá e tirar todo mundo à bala” e por aí afora. Pouco adiantava tentar explicar que a propriedade privada, especialmente a rural, tem que cumprir com sua função social e ser produtiva; que a reforma agrária está prevista na Constituição e que foi a base do desenvolvimento da maioria dos países capitalistas; ou que o objetivo do movimento é criar um assentamento rural para produção de alimentos; ou mostrar o sucesso de outros assentamentos do MST; ou que poderia ser um pólo de desenvolvimento agrícola a partir de Valinhos, com criação de empregos e consumo de alimentos sem veneno. Não, essa parte da sociedade já estava imbuída do preconceito, ignorância, intolerância e ódio que desembocou na eleição para presidente da antítese do que eu chamaria de um homem público e estadista. E também do medo, que está na raiz de todos aqueles atributos negativos.
Nos primeiros dias espalharam mentiras de que havia ficado perigoso circular pela Estrada dos Jequitibás porque o MST estava parando carros, colocando fogo em pneus, só liberando quem pagasse um “pedágio”. Isso nunca ocorreu! Moro a cerca de 7km do acampamento, passando por ali com frequência e nunca presenciei nada disso. Desde a primeira e em todas as vezes em que lá estive para levar doações minhas ou coletadas de amigos, respeitei e fui respeitada por todos, pessoas simples e humildes que só me dirigiram a palavra para dizer “muito obrigada”, “muito obrigado”, “Deus te guie”. E entre essas pessoas que encontrei estava o sr Luiz Ferreira da Costa, covardemente assassinado na manhã de 18 de julho de 2019 por um representante daquela parcela da sociedade valinhense.
Reconheci o sr Luiz assim que foi divulgada a foto daquele pernambucano de 73 anos, agricultor, pedreiro e morador do acampamento desde o início. Na minha primeira visita o encontrei perto do galpão onde é organizada a cozinha e a coleta dos alimentos, junto com outro companheiro também mais velho, e me lembro de termos conversado por alguns minutos. Antes da conversa se iniciar, perguntaram meu nome, e me desejaram felicidades ao nos despedirmos. Voltei outras vezes para levar doações, sempre o avistando por ali, mas, de passagem, não tive tempo de conversar mais.
O contorno dos acontecimentos da manhã de 18 de julho tornou-se ainda mais dramático e revoltante pelo fato da manifestação pacífica do MST ter como objetivo denunciar o descaso da Prefeitura e do Departamento de Águas e Esgotos de Valinhos, que há mais de um ano se recusam a fornecer água ao acampamento, a despeito de solicitações e do não provimento, pelo Tribunal de Justiça, à ação de reintegração de posse da fazenda. O motivo: a empresa proprietária não demonstrou que é uma fazenda produtiva, ao contrário. Além da manifestação ser pacífica, os manifestantes ainda ofertavam alimentos e mudas produzidos no acampamento. Uma oferta, uma doação, num clima alegre, tudo isso para uma sociedade cuja boa parcela e especialmente o poder público – Executivo, Legislativo e Judiciário, lhes dá as costas, ignorando-os por completo e achincalhando-os de todas as maneiras possíveis. Todos os de boa memória se lembram do vídeo postado pelo prefeito Orestes Previtale Jr no mesmo sábado da ocupação da fazenda, alertando que não iria admitir invasão do MST na cidade e que já havia tomado as providências e entrado em contato com os proprietários. Incrível eficiência, numa manhã de sábado, para quem não consegue dar respostas mínimas a problemas muito mais importantes que se avolumam na cidade.
E foi assim que, na manhã de 18 de julho, quinta-feira, um desses, impermeável a qualquer forma de empatia e humanidade, não conseguindo aguardar alguns minutos – talvez menos tempo do que aguardaria em qualquer semáforo da cidade, decidiu acabar com aquilo, ao invés de esperar como os outros motoristas, inclusive os de transporte coletivo. Poderia até mesmo ter descido da sua reluzente caminhonete L200 (veículo grande demais para sua estatura, física e moral) e tentado dialogar e convencer os manifestantes de que precisava passar – afinal, tempo é dinheiro, não é? Ou de que tivesse alguma emergência real. Do que eu conheci e conheço dos acampados do Marielle Vive, das centenas de Luízes e Marias, eles certamente concordariam, não sem antes explicar seu protesto e ofertar seu alimento.
Infelizmente, não foi isso o que se deu. Como esperado, aquela parcela da sociedade valinhense continua concordando com a atitude do assassino. Seu próprio irmão defendeu o ato na delegacia onde era prestado o depoimento. No entanto, a rápida elucidação e prisão do suspeito – depois réu confesso, e principalmente a divulgação do vídeo com a gravação do momento do ataque aos manifestantes, causou uma comoção muito mais forte, nacional e internacionalmente. A realização de um ato de repúdio ao assassinato, pela vida e pela reforma agrária, dois dias depois, deixou claro que basta de violência e que já está mais do que na hora de os agentes públicos (entendendo-se aqui Prefeitura, Câmara Municipal e Órgãos da Justiça) e a sociedade valinhense como um todo, entenderem que não vivemos em uma bolha, que Valinhos precisa urgente se reformular como cidade de e para todos que aqui venham, não apenas proprietários de lotes em condomínios. A começar pela revisão do Plano Diretor em curso, que até o momento não previu uma linha sequer à questão do acampamento e da reforma agrária, a despeito das decisões judiciais favoráveis aos Luízes e Marias. Ao contrário, a empresa Geo Brasilis, contratada pela Prefeitura para revisão do Plano Diretor, propõe que a estrada que liga Valinhos a Itatiba seja denominada Área Estratégica de Desenvolvimento Econômico, com a permissão de atividades econômicas com instalação de usos incômodos, como se um acampamento com mil famílias não existisse ali há um ano e três meses.
Antes de saber da notícia da prisão do assassino do sr Luiz, havia a suspeita de que na fuga ele teria se deslocado até o bairro onde moro e estaria no próprio condomínio. Passei a tarde sobressaltada. Seria um morador, um parente de morador, um convidado? Quando finalmente vieram os detalhes da prisão e a suposta entrada do assassino no “meu espaço de vida” não se confirmou, por instantes senti um grande alívio. Até que assisti, estarrecida, ao vídeo onde o irmão do assassino defende seu ato, como um direito acima da vida. Naquele instante percebi que já não importava se ele morasse ou frequentasse o mesmo espaço que eu, a minha ilha supostamente protegida.
Não, ele não é meu vizinho. Não?
[i] Economista, Mestre e Doutora em Educação. Reside em Valinhos desde outubro de 2011, onde se aposentou um ano depois. É filiada ao Partido dos Trabalhadores, membro do Movimento Mobiliza Plano Diretor Valinhos e vizinha do Acampamento Marielle Vive.